“Restos a pagar” crescem 31% e explicam 2/3 a melhora do resultado fiscal dos estados em 2015 (Valor Econômico 25/4/2016)

Principais mensagens:

1) Atrasar pagamentos não significa fazer ajuste fiscal, a obrigação continua existindo e terá que ser paga. Observa-se que a melhora do resultado fiscal apurado pelo Banco Central no ano de 2015 foi explicada em 2/3 (dois terços) pelo aumento dos restos a pagar.

2) O montante de restos a pagar atingiu R$ 63 bilhões em 2016 e revela a forte restrição financeira que os estados passam. Ao contrário da União que pode elevar seu endividamento e dispõe de maior flexibilidade para honrar seus compromissos financeiros, os estados precisam de autorização para se endividar e, dessa forma, recorrem a dívidas com fornecedores.

3) A capacidade de atrasar pagamentos a fornecedores está chegando no limite em 2016. Há um enorme custo à economia com os atrasos e a imprevisibilidade dos pagamentos. Fornecedores passam por dificuldades e cadeias de suprimento podem ser interrompidas. Ademais, há perdas irreparáveis de reputação de “bom pagador” do governo (risco) que se refletem em sobrepreço nos processos licitatórios.

4) O único alívio financeiro que os estados têm no horizonte é a proposta de renegociação da dívida com alongamento dos vencimentos e redução temporária no fluxo de pagamento dos serviços da dívida, com exigências de maior controle das despesas de pessoal (principal fator de desajuste fiscal). Essa proposta, no entanto, está sofrendo modificações no Congresso e tudo indica que devem aprovar as “benesses”, sem as “contrapartidas”, o que levará a uma nova necessidade de renegociação em breve.

Texto Completo:

Pela Lei 4320, de 1964, restos a pagar são despesas empenhadas, mas não pagas até 31 de dezembro. Para quem não é familiarizado com os conceitos de finanças públicas, a execução da despesa se dá em, pelo menos, três etapas: o empenho, a liquidação e o pagamento. O empenho é realizado quando se chega ao final de um processo licitatório e o estado faz a contratação do serviço. A liquidação se dá quando o fornecedor entregou os bens ou prestou os serviços contratados, ou seja, é o reconhecimento formal que existe obrigação a pagar do estado. Por fim, o pagamento, quando essa obrigação se extingue.

Dessa forma, os restos a pagar são aquelas despesas que o estado contratou e, muitas vezes, o fornecedor já prestou os serviços, mas que ainda não houve o pagamento. O pagamento dos restos a pagar independe de autorização orçamentária, uma vez que foi utilizado o orçamento do ano anterior. Ele faz parte da execução orçamentária do ano anterior, mas pendente da execução financeira. Pela metodologia de apuração do resultado fiscal do Banco Central, que é o dado oficial quanto ao cumprimento da meta pelo setor público, o impacto fiscal da despesa se dá no pagamento e, dessa forma, não é possível capturar esses compromissos que existem e que ainda devem ser pagos.

Há dois tipos de restos a pagar: os processados e os não processados. Os não processados se referem a despesas que foram apenas empenhadas, não foram liquidadas e pagas. Os processados se referem a despesas que foram empenhas e liquidadas, ou seja, os fornecedores já prestaram os serviços e o estado tem uma obrigação formal de pagamento.

Na apuração do resultado primário dos estados pelo Banco Central, pode-se constatar que os estados apresentaram melhora do resultado primário em R$ 22,3 bilhões ao longo de 2015 (saiu de um déficit de R$ 13,2 bilhões em dezembro de 2014 para um superávit de R$ 9,1 bilhões no final de 2015). No entanto, esse resultado esconde o fato de que essa melhora ocorreu, não pelo corte de despesas, mas pela postergação dos seus pagamentos. O volume de inscrição dos restos a pagar passou de R$ 48,2 bilhões em 2015 para R$ 62,9 bilhões em 2016, uma alta de R$ 14,7 bilhões, que representa 66% da melhora do resultado primário em 2015 pela ótica de caixa. Para se ter uma ideia do montante dos restos a pagar inscritos para este ano, eles representam 1,8 vez o total de investimentos realizados em 2015 (R$ 35 bilhões).

Gráfico 1: Restos a Pagar Inscritos em 2015 e 2016, em R$ bilhões
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Fonte: Siconfi/STN. Elaboração Própria.

Os dados deste estudo foram obtidos pelo Relatório Resumido de Execução Orçamentária de cada estado. Foram excluídos da amostra os estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul por ainda não terem divulgado os relatórios do 1º bimestre de 2016. O aumento total dos restos a pagar de R$ 14,7 bilhões foi concentrado nos processados que foram responsáveis pelo aumento R$ 11,9 bilhões, enquanto os não processados responderam por R$ 2,9 bilhões. Ou seja, esse aumento foi concentrado na situação em que os serviços que já foram prestados pelos fornecedores e o estado está atrasando esses pagamentos, relevando a forte restrição financeira que os estados passaram no ano de 2015 para honrar seus pagamentos.

Gráfico 2: Restos a Pagar Inscritos em 2016, em R$ bilhões
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Fonte: Siconfi/STN. Elaboração Própria.

Observa-se que o montante de restos a pagar é proporcional ao tamanho do orçamento de cada estado, algo já esperado pois se trata de uma forma de execução de despesa prevista em Lei. Dessa forma, os estados do Sudeste e Sul concentram os maiores volumes de restos a pagar como pode ser constatado no Gráfico 3.

Este estudo propõe um indicador para medir o stress financeiro que os estados passam, trata-se do crescimento do montante de restos a pagar inscritos em comparação com o ano anterior. Ao contrário da União que tem certo grau de liberdade para aumentar seu endividamento, os estados dependem de autorização para conseguir esse objetivo. O esforço fiscal que os estados fazem é fortemente motivado por suas restrições financeiras. Como 2015 foi um ano de forte queda de arrecadação e de limitação do endividamento, a válvula de escape dos estados foi incorrer em dívidas junto aos fornecedores (aumento dos restos a pagar).

No Gráfico 3 estão apresentados, em ordem decrescente, a taxa de crescimento dos restos a pagar inscritos por estado em 2016. Dos 6 estados que tiveram maior crescimento do volume de restos a pagar, apenas Pernambuco ainda não teve problema para pagar o salário dos servidores em dia. Distrito Federal, Sergipe, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro já apresentaram insuficiência de caixa para honrar essas despesas obrigatórias e apresentam um quadro bem desafiador para este ano. Dessa forma, esse indicador parece ter uma boa aderência sobre os problemas que os estados passam neste ano.

Gráfico 3: Variação dos Restos a Pagar Inscritos em 2016, em comparação com 2015
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Fonte: Siconfi/STN. Elaboração Própria.

Gráfico 4: Restos a Pagar Inscritos em 2016, em comparação com a RCL de 2015
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Fonte: Siconfi/STN. Elaboração Própria.

O ano de 2016 iniciou com um cenário mais desafiador que o início do ano passado. As primeiras informações sobre arrecadação do ano relevam uma queda real média de 15% em relação ao mesmo período do ano anterior. A economia não dá qualquer sinal que se recupera. A capacidade de atrasar pagamentos a fornecedores está chegando no limite em 2016. Há um enorme custo à economia com os atrasos e a imprevisibilidade dos pagamentos. Fornecedores passam por dificuldades e cadeias de suprimento podem ser interrompidas. Ademais, há perdas irreparáveis de reputação de “bom pagador” do governo (risco) que se refletem em sobrepreço nos processos licitatórios.

O único alívio financeiro que os estados podem ter seria essa proposta de renegociação da dívida com alongamento dos vencimentos e redução temporária no fluxo de pagamento dos serviços da dívida, com exigências de maior controle das despesas de pessoal por parte dos entes (principal motivo dessa crise). Essa proposta, no entanto, está sofrendo modificações no Congresso e tudo indica que parlamentares devem votar as benesses, sem as contrapartidas, o que levará a uma nova necessidade de renegociação. As despesas com serviços da dívida representam, em média, apenas 15% das despesas de pessoal. Não limitar o crescimento desta última, significa que o principal fator do desajuste fiscal não foi endereçado e que deveremos reviver este momento em breve.

LINK DA REPORTAGEM DO VALOR ECONÔMICO: http://www.valor.com.br/brasil/4534873/estados-usam-restos-pagar-para-obter-superavit

ARQUIVO EM PDF: RAP Site

“Na alegria e na tristeza… na riqueza e na pobreza… até que a morte nos separe”

Era uma vez uma história de um longo relacionamento entre a União e os Estados. Nesse relacionamento, havia períodos de altos e baixos. No final da década de 90, pelo fim do imposto inflacionário e pelas brechas legais que existiam à época (os estados poderem se endividar com seus próprios bancos), os entes subnacionais incorreram em déficits fiscais insustentáveis e os bancos estaduais geraram um risco sistêmico no sistema financeiro nacional. A União, sabendo dos problemas que iria enfrentar, resolveu celebrar um pedido de casamento, dado o longo período que as partes teriam que conviver juntas para saldar essa dívida.

A época, não havia nenhum mecanismo legal que tornasse essa relação conjugal obrigatória. Pelo contrário, a Constituição Federal de 88, no seu artigo 24, estabelece que “compete à União, aos Estados e aos Municípios legislar concorrentemente sobre: … II – Orçamento”. Dessa forma, entende-se que os entes federados têm autonomia plena para tributar e realizar despesas por meio da alocação seus recursos (orçamento). Tanto é que todo o esforço que o Governo Federal faz atualmente de pequenas normatizações como o de padronizar as práticas contábeis dos entes federados objetivando a aplicabilidade dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal sofrem questionamentos judiciais.

Mas voltando aos anos 90, apesar de não ser obrigatório e devido a pressões políticas, a União resolveu celebrar um acordo em que assumiria a dívida dos estados e de alguns municípios, e ela ficaria responsável por captar esses recursos junto ao mercado. Na ocasião, o custo de financiamento da União junto ao mercado girava a uma taxa bem elevada. Se os estados resolvessem captar esses recursos junto ao mercado, pagariam uma taxa significativamente superior, dado seu estado de semifalência à época. A União celebrou os contratos junto a estados a uma taxa entre 6% a 7,5% + IGP-DI e, em poucos anos, verificou-se que esses contratos foram um péssimo negócio para União, pois ela pagava uma taxa bem superior sobre os saldos assumidos.

Os custos de rolagem dessa dívida junto ao mercado era significativamente superior aos contratos dos estados, ao ponto de acumular uma diferença de R$ 209 bilhões até 2013 (ano em que Lei Complementar (LC) 148, de 2014, alterou os indexadores das dívidas estaduais para a menor taxa entre a SELIC e IPCA + 4% a.a.). Com vistas a evidenciar a ordem de grandeza do montante de subsídios entre a União e os estados, registre-se que ele representou quase a metade (47%) de todos os recursos transferidos do Fundo de Participação dos Estados (FPE), no aludido período. (Esse tema foi tratado no artigo https://pedrojucamaciel.com/renegociacao-das-dividas-dos-estados-custos-implicitos-e-risco-moral-valor-economico/).

A questão fundamental nesse mecanismo é que a provisão de subsídios não foi equitativa entre os entes estaduais. Apenas o Estado de São Paulo, a título de ilustração, recebeu quase 70% do montante de subsídios “distribuídos”. Outros Estados que receberam grande montante do total distribuído foram: Rio Grande do Sul (9%), Rio de Janeiro (6%), Paraná (3%) e Santa Catarina (2%). Se somarmos todos os Estados do Norte e Nordeste, o “subsídio recebido” foi inferior a 5% do total.

Além da mencionada possibilidade de iniquidade regional, a expectativa recorrente de renegociação da dívida dos entes federativos pode levar a uma situação do que se chama na teoria microeconômica de “risco moral”: por que eu, Estado, irei fazer meu “dever de casa”, colocando as “contas em dia” e ajustando meu fluxo intertemporal entre receitas e despesas se, no final, haverá uma renegociação da minha dívida?

Nos Estados Unidos, quando ocorre um problema financeiro, os governos dispõem de elevada discricionariedade para cortar despesas, inclusive pessoal. Se o problema persistir, há um processo judicial de declaração de falência, no qual os políticos são afastados e a Justiça nomeia um administrador para implantar um plano de recuperação. Caso o plano de recuperação não seja bem-sucedido, a justiça troca o administrador. Dessa forma, você garante que os desajustes fiscais não sejam repartidos com outros entes, além de exigir maior maturidade política e fiscal da população para eleger os seus governantes.

Além dos subsídios já dados pela União, da iniquidade regional dessa distribuição e do risco moral associado, há alguns estados que pretende adotar a velha postura oportunista de lhe dar com o problema: questionar alguns dos termos do (contrato) relacionamento celebrado. Questionaram que os juros cobrados nesses contratos se dariam numa taxa composta, em vez de simples. Minha pergunta: existe algum contrato de empréstimo, em qualquer lugar do mundo, que cobre juros simples sobre o saldo devedor em vez de juros compostos? Se existir, por favor, me informe que estou interessado em pegar. Esses estados que questionam essa cobrança, cobram os valores dos seus devedores que forma? Juros compostos. Se forem captar dinheiro a mercado? Juros compostos. Por que a União terá que “pagar o pato” dessa renegociação? Ela já pagou (R$ 209 bilhões)! Ainda querem mais?

Quem é a União? Somos todos nós que pagamos tributos federais como IPI, IR, Contribuições, etc. Sendo bem objetivo: informo a todos os contribuintes que, se o STF manter o posicionamento preliminar favorável a um determinado estado da Região Sul que fez uma ação questionando a cobrança de juros compostos sobre o contrato de refinanciamento da sua dívida junto à União, as consequências serão as seguintes:

1) Haverá um forte aumento da dívida pública federal em valores superiores a R$ 310 bilhões e o perdão dessa dívida concentrada em poucos estados devedores. Com essa folga financeira, os estados beneficiados terão condições de expandir fortemente as despesas públicas, seja em investimentos, seja com despesas correntes como custeio e pessoal.

2) Haverá um forte aumento dos subsídios às regiões mais ricas do país. O Norte e Nordeste só se beneficiaram em 5% desses empréstimos. Pode parecer que isso, num primeiro momento, não interfere na realidade de cada região, mas tenham certeza que implicará em aumento da carga tributária ou redução nas transferências e nos serviços públicos federais.

3) Haverá uma forte incerteza jurídica no país. Toda vez que uma das partes se sentir fragilizada em determinado contrato e resolver questionar a justiça, para que existirá contratos? Trata-se de o elemento básico de uma economia de mercado.

Voltando para o exemplo da celebração do contrato de casamento de comunhão parcial de bens, ninguém é obrigado a conviver com um parceiro o resto da vida. Ótimo que exista livre arbítrio. Em um processo de divórcio, há a chamada fase de “separação de bens”. No entanto, quando o casal assumiu mais passivos do que ativos, é necessário separar os passivos de cada parte desde o momento em que foi celebrada essa união. Tenham certeza que, se essa separação ocorrer de fato e de forma justa, os maiores perdedores são os estados, notadamente os mais devedores.

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