Renegociação das dívidas dos Estados: custos implícitos e risco moral* (Valor Econômico 28/3/2016)

No Brasil, tornou-se praxe os entes federados fazerem pressão política para renegociar os termos das suas dívidas contratadas junto à União, nos momentos em que passam por dificuldades financeiras. Tanto na Câmara dos Deputados, como no Senado Federal, há dezenas de projetos com esse intuito. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, está em tramitação o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 315, de 2016, com objetivo de recalcular as dívidas estaduais pela taxa de juros simples, em vez da acumulativa.

O impacto fiscal do PDC nº 315/16 é uma transferência em torno de R$ 300 bilhões de dívida estadual para a União, acentuando a atual trajetória ascendente da dívida do Governo Federal, além de gerar forte incerteza jurídica sobre todos os contratos de financiamento em vigor no País. É necessário esclarecer que, nas renegociações dos contratos de dívida dos Estados junto à União, geram-se custos implícitos que são repartidos por toda a federação e que, geralmente, não são discutidos de forma tão clara.

Na última renegociação efetivada, ocorrida no triênio 1997-1999, por meio da Lei 9.496/97, os contratos das dívidas estaduais renegociados com a União implicaram elevado subsídio implícito desta aos Estados. O subsídio ocorreu toda vez em que a taxa de juros paga pelo Estado à União (IGP-DI + 6% a.a. ou 7,5% a.a.) foi inferior à taxa de juros de captação do Tesouro Nacional, que chegou a ser superior a SELIC, dependendo da estratégia de composição dos títulos que financiam a dívida do Governo Federal.

Ao realizar as estimativas desses subsídios, com base na metodologia estabelecida no Texto para Discussão n. 1889 do Ipea, chegamos a um montante de R$ 209 bilhões até 2013 (ano em que Lei Complementar (LC) 148, de 2014, alterou os indexadores das dívidas estaduais para a menor taxa entre a SELIC e IPCA + 4% a.a.). Com vistas a evidenciar a ordem de grandeza desse montante de subsídios, registre-se que ele representou quase a metade (47%) de todos os recursos transferidos do Fundo de Participação dos Estados (FPE), no aludido período.

A questão fundamental nesse mecanismo é que a provisão de subsídios não foi equitativa entre os entes estaduais. Apenas o Estado de São Paulo, a título de ilustração, recebeu quase 70% do montante de subsídios “distribuídos”. Outros Estados que receberam grande montante do total distribuído foram: Rio Grande do Sul (9%), Rio de Janeiro (6%), Paraná (3%) e Santa Catarina (2%). Se somarmos todos os Estados do Norte e Nordeste, o “subsídio recebido” foi inferior a 5% do total.

O montante do subsídio distribuído foi positivamente relacionado ao montante da dívida renegociada com a União e às taxas de juros impostas. Dessa forma, os Estados que possuíam os maiores níveis de endividamento (em termos absolutos) foram justamente os que mais receberam subsídios. Algumas unidades estaduais da federação, no entanto, chegaram a pagar subsídio à União, em vez de receber, como foi o caso de Alagoas, Acre, Amapá, Ceará, Distrito Federal e Pará, as quais tiveram essa distorção corrigida por meio de descontos retroativos concedidos pela LC 148, de 2014.

Destaque-se que, além da mencionada possibilidade de iniquidade regional ou de outra congênere, a expectativa recorrente de renegociação da dívida dos entes federativos – vez ou outra efetivada – pode levar a uma situação do que se chama na teoria microeconômica de “risco moral”: por que eu, Estado, irei fazer meu “dever de casa”, colocando as “contas em dia” e ajustando meu fluxo intertemporal entre receitas e despesas se, no final, haverá uma renegociação da minha dívida?

De fato, do ponto de vista fiscal, talvez, seja pela existência desse tipo de “incentivo” que a vasta maioria dos entes estaduais não tenha gerido suas finanças de forma responsável nos últimos anos, além de terem adotado conceitos contábeis “criativos” para registro das despesas (e até mesmo de receitas) com objetivo de burlar os limites da LRF.

Nos Estados Unidos, quando ocorre um problema financeiro, os governos dispõem de elevada discricionariedade para cortar despesas, inclusive pessoal. Se o problema persistir, há um processo judicial de declaração de falência, no qual os políticos são afastados e a Justiça nomeia um administrador para implantar um plano de recuperação. Caso o plano de recuperação não seja bem-sucedido, a justiça troca o administrador. Dessa forma, você garante que os desajustes fiscais não sejam repartidos com outros entes, além de exigir maior maturidade política e fiscal da população para eleger os seus governantes.

No mês de março, o Governo Federal anunciou “Plano de Auxílio aos Estados e ao Distrito Federal” que objetiva alongar os prazos para pagamento das dívidas da Lei 9.496/97 e também das operações de crédito que alguns entes estaduais tomaram juntos ao BNDES. É preciso deixar transparente os subsídios (por Estado) que poderão estar implícitos nesse alongamento, além das possíveis iniquidades regionais provocadas por essa política pública.

Não obstante, é preciso reconhecer que as contrapartidas exigidas pela União em termos de responsabilidade fiscal no aludido Plano de Auxílio deveriam ter sido mais audaciosas; de fato, foram desconsideradas importantes reformas estruturais, como o estatuto da estabilidade do servidor público, regras de previdência e regulamentação do direito de greve dos servidores. Ademais, faz-se necessário avançar nos desenhos de mecanismos, a fim de evitarmos incentivos inapropriados para a gestão das contas públicas e de não repetirmos esse processo de desajuste fiscal que levou o Brasil a esta grave crise que atravessamos.

* Autores:

Alexandre Manoel
Pesquisador do Ipea.

Pedro Jucá Maciel
Assessor Econômico no Senado Federal.

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O impacto das despesas de pessoal nas finanças estaduais e os desafios a serem enfrentados

Principais mensagens:

1) O ajuste das contas públicas dos estados passa, necessariamente, pelo maior controle das despesas de pessoal. Esse componente do gasto foi o que mais cresceu nos últimos 4 anos, passando de 6,1% do PIB em 2011 para 6,7% do PIB em 2014.

2) O forte crescimento dessas despesas só ocorreu pela “criatividade” nos registros dessas despesas pelos governos estaduais, para fins de cumprimento dos limites da LRF. Hoje, uma pequena parcela dos estados se encontra dentro desses limites, quando os dados são ajustados.

3) A cada 1% de economia das despesas de pessoal, há uma melhora do resultado primário dos estados em R$ 3,6 bilhões. Apenas para efeito de comparação, o resultado primário total dos estados no ano de 2015 foi R$ 9,1 bilhões.

4) As condicionantes propostas pelo governo para a renegociação das dívidas estaduais estão na direção certa em focar em pessoal, porém poderiam ser mais ousadas em termos estruturais.

Texto Completo:

As despesas de pessoal se tornaram a variável-chave para explicar a deterioração recente das finanças públicas estaduais. No estudo “Finanças Públicas Estaduais: o Processo Recente de Deterioração, suas Perspectivas e as Reformas Necessárias” que será publicado em breve, pude verificar que a deterioração das contas públicas dos estados ocorrida entre 2008 e 2014 pode ser explicada em 28% pelo menor dinamismo da arrecadação e 72% pelo aumento das despesas. Em relação ao aumento das despesas, 88% foi fruto da elevação das despesas de pessoal e apenas 12% dos investimentos.

No ano de 2015, objeto do estudo “Contas públicas estaduais em 2015: melhora do resultado primário, mas piora do perfil fiscal” (https://pedrojucamaciel.com/?p=298) podemos verificar que a melhora do primário foi ocasionada pela forte restrição financeira que os estados sofreram, dada a incapacidade de elevar o endividamento, juntamente com a piora do perfil do gasto público: aumento das despesas de pessoal acima da inflação, enquanto os investimentos foram fortemente reprimidos. Ademais, houve um processo forte de acúmulo de restos a pagar (tema que será objeto de outro post em breve).

Dado o estado de semifalência que alguns governos estaduais chegaram, esses entes se organizaram, mais uma vez, para pressionar o governo federal dar um “alívio financeiro” por meio dos descontos temporários dos pagamentos dos serviços da dívida junto à União. É importante mencionar que esses empréstimos envolvem subsídios implícitos da União junto aos estados e, ademais, os beneficiários são fortemente concentrados nas Regiões Sul e Sudeste (tema que será objeto de outro post em breve). Dessa forma, o Governo Federal já sinalizou que poderá conceder esse “alívio”, no entanto, em contrapartida, exigirá uma série de condicionantes em termos de ajuste fiscal, o que razoável.

Dentre as condicionantes que estão sendo discutidas nas negociações (baseadas nos jornais), estão justamente medidas que visam ao controle dos aumentos das despesas de pessoal. Este fato relevam um acerto de diagnóstico. De fato, as despesas de pessoal são o principal componente dos gastos estaduais. Realizando o cálculo de quanto melhoraria do primário dos estados a economia de 1% das despesas de pessoal, chegamos ao valor de R$ 3,6 bilhões. Para se ter ideia desse montante, o resultado primário total de 2015 dos estados foi R$ 9,1 bilhões (ou 2,5% das despesas de pessoal).

Gráfico 1: Economia gerada pela redução de 1% das despesas de pessoal, em R$ milhões
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Fonte: STN. Elaboração Própria.
* Estados que contabilizam os inativos e pensionistas como custeio
** Dados do orçamento 2015, uma vez que o RREO não estava pronto.

O gráfico 1 apresenta esses resultados por estado. Os dados foram extraídos do Anexo 1 dos Relatórios Resumidos de Execução Orçamentária (RREO) de cada estado, excluindo as operações intra-orçamentárias. Ademais, foram feitos ajustes nos estados que contabilizam as despesas com inativos e pensionistas como custeio para reclassificá-las como pessoal.

Esse aumento recente das despesas de pessoal só foi possível devido a uma lacuna existente na legislação atual que é a inexistência do Conselho de Gestão Fiscal da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Isso deu liberdade aos estados realizarem a “contabilidade criativa” das despesas de pessoal para fins de cumprimento dos limites impostos pela LRF para esta despesa. O limite total, no nível estadual, é de 60% da Receita Corrente Líquida (RCL), subdivido em limites específicos para cada um dos três Poderes, Ministério Público e Tribunais de Contas.

O que podemos observar, em quase todos os estados, foram artifícios como a exclusão das despesas com inativos e pensionistas do cálculo ou a troca da contabilização dessas despesas entre os poderes, redução dos valores pagos de imposto de renda pessoa física, abatimento de verbas indenizatórias, não contabilização dos benefícios e auxílios de qualquer natureza, além das despesas de exercícios anteriores. Ademais, deveria contabilizar para fins desses limites as despesas com as organizações sociais, contabilizados como custeio, mas que são serviços fortemente concentrados em pessoal, como nos hospitais e em escolas.

Foi interessante contatar neste estudo as diferenças que existe entre os relatórios exigidos pela LRF. O relatório de Gestão Fiscal, onde os entes demonstram os cumprimentos dos limites das despesas de pessoal, quase todos os estados estão em situação regular. No entanto, quando utilizamos os dados das despesas de pessoal do Anexo I do RREO e os dados de receita corrente líquida do Anexo III, chegamos a resultados complemente diferentes.

Gráfico 2: Despesas de Pessoal, em % da RCL (dados RREO)
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Fonte: STN. Elaboração Própria.
* Estados que contabilizam os inativos e pensionistas como custeio

O gráfico 2 apresenta as despesas de pessoal pela receita corrente líquida utilizando dados do RREO, excluindo as despesas intra-orçamentárias. Foram feitos ajustes nos estados que contabilizam as despesas com inativos e pensionistas como custeio para reclassificá-las para pessoal. O Estado do MS foi excluído pela ausência do RREO de encerramento de 2015 e o DF foi excluído por precisar de tratamento específico para as despesas de pessoal financiadas pelo FCDF.

É importante destacar que as informações levantadas ainda são conservadoras, uma vez que as despesas com organizações sociais não são computadas (e representam uma fração importante do gasto para alguns estados), assim como é importante destacar que nem toda receita corrente líquida pode ser usada para fins de pagamento de pessoal. Como o orçamento brasileiro possui elevada rigidez, as restrições financeiras são maiores do que aparentam.

Considerações finais

As despesas de pessoal possuem características peculiares em relação às demais: quando ela cresce, nunca consegue ser reduzida, já que os servidores são estáveis e a legislação proíbe a redução de salários. Dessa forma, ela deve ser criteriosamente planejada de forma integrada com os serviços públicos demandados. A maioria dos países do mundo adotam hipóteses de ganhos de eficiência para recontratações, uma vez que os meios de trabalho disponíveis, com as novas tecnologias, permitem aumentos de produtividade.

As reformas necessárias para esse componente não podem ser apenas focadas em controlar o seu crescimento, mas também em dar condições aos administradores públicos poderem gerenciar com flexibilidade os recursos humanos com objetivo de ter ganhos reais de eficiência no serviço público. Atualmente, é difícil demitir até servidores comprovadamente corruptos, o que é uma distorção clara do conceito de estabilidade. É preciso revisitar o artigo 169 da Constituição Federal, estabelecer critérios para o direito de greve dos servidores para a população não ficar refém da falta de serviços essenciais e vedar algumas brechas da LRF como, por exemplo, a possibilidade de conceder aumentos salariais com repercussões financeiras no mandato do governante seguintes. O Brasil está mergulhado em uma profunda crise e, tenham certeza, soluções fáceis não nos tirarão dela.

ARQUIVO EM PDF: Despesas de Pessoal